FUNAI QUER TRANSFORMAR 75%DE AMARANTE EM RESERVA INDÍGENA


No começo, ninguém na pequena Amarante do Maranhão [a 674 km de São Luís] sabia de onde haviam saído aqueles quatro homens que diziam trabalhar “para o governo”. Durante catorze dias, entre outubro e o começo de novembro, eles caminharam em meio às chácaras e fazendas do município, a 678 quilômetros da capital. Queriam saber a extensão de cada propriedade, o nome do dono e o tipo de plantação ou de criação que havia por lá. Moradores acharam que, se tratava de uma espécie de censo. Foi só pouco antes de partir que os homens revelaram a razão da sua visita: estavam a serviço da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), incumbidos de finalizar um estudo para demarcação de terras indígenas.
Amarante, de 37.894 habitantes, abriga três tribos – os guajajara, os krikati e os gavião. Entre 1970 e 2004, sucessivas demarcações fizeram com que 54% do território do município virassem reserva indígena. Agora, seus habitantes foram informados de que o plano da Funai é quintuplicar a área destinada aos gaviões, o que elevaria a porcentagem para 75,7%. Faltam apenas duas assinaturas – a do ministro da Justiça e a do presidente da República – para que cada um dos 577 gaviões passe a ter para si um pedaço de terra equivalente a 430 campos de futebol enfileirados – e também para que mais de 20 mil moradores não índios, pecuaristas em sua maioria, tenham de deixar suas terras. “Para onde irão essas pessoas? E os bois? Nossa economia vai quebrar”, diz a prefeita Adriana Kamada, do PV.
Índios são contra – Se já parece absurdo dar tanta terra a tão poucos índios – e ao custo de tamanho sacrifício de quem lá mora e produz –, que tal saber que os próprios gaviões são contra a ideia de ter sua reserva ampliada? “Não sabemos quem pensou isso”, diz o cacique Evandro Luiz, um jovem de 22 anos que substitui o antigo líder gavião José Brasil, morto há dois meses. “O pessoal da Funai veio até aqui e a gente está sem saber de nada. Isso foi uma ideia deles”, afirma o cacique. O índio Luciano Guará resume o pensamento da taba: “Não precisamos de tanta terra. Não nos serve para nada. Por lei, não podemos colocar grandes plantações na reserva”, diz. “Um posto de saúde aqui seria muito mais útil.”
No período colonial, os gaviões viviam na região onde hoje se localiza o Pará. De guerra em guerra, foram se espalhando e migrando de território. No século XIX, um grupo alcançou o Maranhão. Foi só por volta de 1950 que eles chegaram ao local onde vivem hoje. Em 1982, ganharam a posse das terras – 42 mil hectares. Atualmente, vivem em casas de alvenaria, a maioria com antena parabólica. No centro da reserva, acessível por uma estrada de terra, há um orelhão e uma escola. Muitos moradores trabalham na cidade como motoristas, comerciantes ou funcionários públicos. Outros tiram o sustento da agricultura de subsistência: plantam feijão, milho e mandioca. Ninguém mais vive da caça nem se desloca pela mata conforme as estações. Diante disso, o motivo pelo qual a Funai quer dar a cada gavião um território do tamanho do Central Park, a maior área verde de Nova York, resta um mistério.
Desde que a notícia da ampliação da reserva passou a circular em Amarante, os índios estão receosos. Em geral, eles mantêm uma relação cordial com os moradores não índios do município. Nos últimos tempos, porém, estão evitando ir à cidade. Temem sofrer ataques verbais ou físicos. Isso porque, entre os moradores da área que a Funai quer entregar aos gaviões, há muitos que desde já foram prejudicados pelo projeto: negócios que haviam sido fechados tiveram de ser desfeitos, a venda de material de construção desabou, famílias inteiras pensam em mudar de cidade e todos põem a culpa por suas angústias nos índios.
É o caso de Jorge Martins. Com 80 anos vividos na mesma região, ainda ativo na roça, ele tem um sítio vizinho à reserva dos gaviões: ali, planta feijão, arroz e mandioca, além de criar 500 cabeças de gado. “Toda a minha família tira o sustento desta terra, e agora querem entregar tudo aos índios?”, queixa-se. A 20 quilômetros dali, o casal Raimundo Floriano, de 83 anos, e Dinah da Silva, 73, vive situação parecida. “Moramos, eu e meu marido, neste pedaço de chão desde que nascemos”, diz ela. Mostra a escritura de sua casa, amarelada de décadas: “Nossos pais já viviam aqui. Não sei onde mais eu poderia viver”.
Interesse de mineradoras – Como sempre acontece quando se fala em demarcação de terras indígenas, há rumores de que interesses de companhias mineradoras podem estar por trás do processo. De fato, desde abril, foram feitos 39 pedidos de prospecção ao Departamento Nacional de Produção Mineral para explorar minérios –especialmente bauxita – na terra que a Funai quer dar aos gaviões. Todos os pedidos foram apresentados pela mesma empresa, a Vicenza Mineração, que foi fundada em março, no Rio de Janeiro. Hoje, explorar minerais em terra indígena é proibido, mas a restrição deve cair em breve. Um projeto que tramita no Senado prevê a liberação das mineradoras, que pagariam royalties às tribos sobre a sua produção. O projeto é de autoria do senador Romero Jucá, do PMDB de Roraima.
Além disso, como ocorre toda vez que um assunto envolve índios, sem-terra, quilombolas e afins, há uma ONG se dando bem. Em Amarante, o laudo antropológico que justifica a transformação da cidade em aldeia foi preparado pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Desde 2004, o CTI recebe dinheiro do governo federal (até agora já foram mais de R$ 2 milhões) para, entre outras coisas, fornecer a justificativa científica para o estabelecimento de reservas. Os projetos do CTI também recebem o apoio de instituições de países como Holanda e Noruega. Com tão farto patrocínio, não é de espantar que a ONG veja raízes indígenas brotando por todo lado.

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